sábado, 10 de novembro de 2012

Lairton e Seus Teclados - Morango do Nordeste

Antes de escrever este post, minha primeira grande dúvida foi? Como chamar o artista? Lairton ou Lairton e Seus Teclados? Mesmo considerando que um artista é artista por sua arte, não por suas ferramentas, acho que cabe aqui apontar que ninguém jamais ouviu falar em Leozinho do Pincel ou Mica da Talhadeira (para quem não sabe, esses foram os primeiros nomes artísticos usado por Leonardo da Vinci e Michelangelo, antes de traírem a cena local e se venderem aos caprichos e padrões estéticos dos mecenas majors, o que, como vemos hoje em dia com a música, foi um grande erro). Então, para não colocá-lo no mesmo rol que os dois traidores citados, por respeito e admiração às raízes e por partir do princípio filosófico de que não há parte sem todo, nem todo sem parte, achei mais apropriado chamá-lo mesmo de Lairton e Seus Teclados.
Pois bem, para aqueles que viveram sob uma rocha no apagar das luzes do último século e no início deste, Lairton e Seus Teclado foi, talvez, o primeiro artista popular a ousar abalar, de fato, as estruturas da lógica imposta pelo mercado do entretenimento de então cantando uma música com letra de conteúdo desafiador para mentes mais simplórias e incautas . Ei-la, em música e letra:


Morango do NordesteWalter de Afogados/Fernando Alves
Estava tão tristonho quando ela apareceu
Seus olhos, que fascínam logo estremeceu
Os meus amigos falam que eu sou demais
Mas é somente ela que me satisfaz
É somente ela que me satisfaz
É somente ela que me satisfaz
Você só colheu o que você plantou
Por isso é que eles falam que eu sou sonhador
Me diz o que ela significa pra mim
Se ela é um morango aqui do nordeste
Tú sabes, não existe sou cabra da peste
Apesar de colher as batatas da terra
Com essa mulher eu vou até pra guerra
Aaaaaaaiiii, é amoooor
2x ai ai ai é amor

Já na segundo linha, temos a uma amostra da grande batalha que este petardo trava e contra que tipo de ditadura: a da linguagem. "Seus olhos, que fascinam logo estremeceu". Numa única linha, vê-se cair por terra conceitos retrógrados e ultrapassados como aposto e concordância verbal. A partir daí, analisando-se linha por linha, estrofe por estrofe, vemos uma poesia que, em termos de abstração, faria Salvador Dalí tirar o bigode e virar escriturário do Banco do Nordeste (do Nordeste, não por acaso), como neste trecho: Você só colheu o que você plantou/Por isso é que eles falam que eu sou sonhador. Ora, fica claro que o assunto aqui é a moral cristã, onde, com incrível poder de síntese, a estrofe quer dizer que "tudo que te acontece é resultado do que fazes, mas, ainda ainda que tudo o que faças desde a concepção no ventre de tua mãe durante os festejos da Corrida do Jegue em Itabi - SE, em 1973, com o aquele vaqueiro banguelo que ficou em terceiro lugar pelo fato de o jegue daquele que chegou antes dele ter sido pego no antidoping por ter sido submetido uma aplicação de Ivomec na semana anterior à prova seja o mal e o injusto, eu, nem um milímetro além de humano, demasiadamente humano, sou capaz de te perdoar e tenho a esperança de que, um dia, te arrependerás e seguirás o caminho do bem, da justiça e da retidão".
Temos também o uso da paixão e do romantismo servindo como pano de fundo para as mazelas impostas ao nordeste pelo resto do país, sobretudo São Paulo (que, na verdade, só serve pra tomar nossos mestres de obras com o intuito de construir estádio para equipes de futebol que disputam, com frequência, divisões inferiores de campeonatos organizados por entidades futebolísticas; como Palmeiras, Juventus, etc), aqui: Me diz o que ela significa pra mim/Se ela é um morango aqui do nordeste; fica claro que o estado de São Paulo, junto com a SUDENE, insistem, paulatinamente, em separar as famílias nordestinas com uma promessa de vida melhor, mas só nos aculturam, como resume a segunda oração, nos fazendo usar bigodinho ralo, boné aba reta, moleton cheio de estampa feia e nos fazendo chamar panificadora de "padoca".
E não para por aí. Há na obra, também, referências claras à Confederação do Equador, à reforma agrária e ao fim do celibato por parte dos religiosos: Tú sabes, não existe sou cabra da peste/Apesar de colher as batatas da terra/Com essa mulher eu vou até pra guerra. Como já escreveu Euclides da Cunha, "o sertanejo é, antes de tudo, um forte". É disso que a primeira estrofe trata, da bravura dessa gente que luta sem chorar contra as injustiças da natureza (conluiada com São Paulo) sem esmorecer; mostra como, antes da SUDENE, o solo nordestino em se plantando tudo dava, onde hoje só dá mandacaru, palma e maconha, em determinadas regões; mostra que, caso o celibato não fosse imposição do clero, O Frei Caneca poderia ter levado às batalhas sua consorte para reforçar as trincheiras (havia quem a considerasse um canhão, mas beleza não se põe à mesa) e aí o mapa do Brasil hoje poderia ser outro (não, o nordeste não fica no Acre).
E para terminar, a última estrofe fala por si só: Aaaaaaaiiii, é amoooor/2x ai ai ai é amor.

Por hora, ficamos por aqui. Mas traremos mais exemplo de como a lógica e a razão fundamentada, organizada e sistematizada mata a criatividade de nossos artistas populares um pouco mais a cada dia.